Para quem é seropositivo e vive em Moçambique, o tratamento antiretroviral é uma lotaria cujas chances de obter o medicamento vital depende da região onde vive.
Morando na cidade e na província de Maputo, a capital, as chances são desproporcionadamente maiores. Ali mora quase metade das pessoas em tratamento.
No norte, a província de Niassa acolhe um por cento do total de pessoas em tratamento. Não é que Niassa não precise: de quase um milhão de habitantes, 11.1 são seropositivos. Desde 2003, Moçambique fez um enorme esforço para dar tratamento ARV gratuito.
Em 2004, três mil pessoas estavam em tratamento. Em Dezembro de 2006, já eram 32 mil. Esta cifra, porém, é uma gota de água no oceano de 235 mil pessoas que precisam ARVs urgentemente, segundo estima o Programa das Nações Unidas para o HIV/Sida (Onusida).
Com 19.8 milhões de habitantes, Moçambique tem 16.2 por cento de seroprevalência - a décima maior no mundo. A lotaria das ARVs desfavorece as crianças. Das 75 mil que necessitam desses remédios, menos de três mil recebem.
Delas, 68 por cento estão no Sul, 24 por cento no Centro e oito por cento no Norte. O corte vertical para prevenir a transmissão ao bebé chega a menos de sete por cento das mulheres grávidas seropositivas. Cem bebés nascem com HIV todos os dias. Sem tratamento, mais da metade deles morre antes de completar um ano.
Deficit gritante
Certo, o desafio é enorme. Uma causa é o gritante deficit de recursos humanos, com um médico para cada 30.8000 habitantes, bem abaixo do recomendado pela
Organização Mundial da Saúde. Outro factor é a destruição das infra-estruturas – clínicas, escolas, pontes e estradas - durante os 16 anos de guerra civil, terminada em 1992.
Durante os anos 80 e 90, por causa da guerra, 5.7 milhões de pessoas deslocaram-se internamente e 1.7 refugiaram-se no Malawi, Zimbabwe e África do Sul, países vizinhos de alta seroprevalência.
Com o acordo de paz de 1992, abriram-se estradas e o país ficou uno, do Rovuma até ao Maputo.
Milhões voltaram a casa, incluindo 270,000 militares desmobilizados e suas famílias. A livre circulação de bens e pessoas levava um passageiro oculto: o HIV.
Outras urgências não faltavam: as piores secas do século, cheias, fome, miséria, e a falta de todos os bens e serviços essenciais.
Durante a guerra civil, Moçambique foi classificado, ano trás de ano, como o país mais pobre do mundo no índice de desenvolvimento humano. A Sida era um problema a mais entre tantos.
Quando a epidemia coloca-se como um problema real, já tinha atingido proporções alarmantes. De uma seroprevalência de três por cento em 1992, passou a 12 por cento em 2001, e 16.2 por cento em 2006. Ainda cresce, especialmente entre os jovens dos 15 aos 49 anos.
Diferenças regionais
Nas províncias mais afectadas, no Sul e no Centro, a seroprevalência oscila entre 26 por cento, na província de Sofala, e 16 por cento, em Tete.
Um factor é que estas províncias têm corredores comerciais e fronteiras com países de alta seroprevalência. No entanto, as três províncias do norte, e Inhambane, no Sul, têm seroprevalência relativamente mais baixa: Cabo Delgado (8.6 por cento), Nampula (9.2), Niassa (11.1 por cento) e Inhambane (11.7). (ver tabela).
O que estas províncias têm em comum? É que nelas a circuncisão masculina é quase universal. Isto é consistente com estudos recentes que afirmam que a circuncisão masculina protege da infecção pelo HIV.
As três províncias do Norte são maioritariamente islâmicas, o que está associado a um baixo nível de consumo de álcool, maior controlo social da sexualidade – e a circuncisão masculina universal.
A diferença, em Inhambane, zona turística predominantemente cristã, consome-se álcool e inicia-se o sexo muito cedo. Porém, as etnias locais practicam a circuncisão masculina. Em Moçambique, o mapa de baixa seroprevalência coincide perfeitamente com o mapa de alta circuncisão masculina.
Tratamento ARV por Província.
Fonte: Ministério da Saúde |
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Sonho virou realidade
Como em toda África, o tratamento massivo com ARVs era um sonho, até 2003, quando a dinâmica internacional descartou a ideia de que os ARVs não eram para África.
Doadores e governos juntaram-se para começar programas de tratamento. No início, havia certo cepticismo entre as autoridades moçambicanas sobre a capacidade técnica e logística do sistema de saúde pública, das pessoas para aderir e da economia familiar para suprir a alimentação nutritiva necessária para tomar os remédios.
Havia também receios de uma eventual quebra no apoio internacional ao programa antiretroviral de um país dependente de doações. Mas, apesar das dificuldades, o tratamento estende-se no país. Um problema é que, por causa do medo e estigma, as pessoas seropositivas não vão testar, ou chegam ao hospital já graves e os ARVs não resultam.
Os hospitais estão a transbordar.
No Hospital da Beira, 80 mulheres partilham 54 camas, e 80 por cento delas têm Sida. Uma solução é o cuidado domiciliário. O que levanta uma questão: qual é o limite entre solidariedade comunitária e exploração do trabalho gratuito para suprir os serviços que o estado não assegura?
Mulheres e raparigas cuidam maioritariamente dos doentes - mais um fardo para elas, culpadas de trazer a Sida, a “doença da mulher” para dentro da família. Aos poucos, a lotaria da vida torna-se menos exclusiva. Em Dezembro, o tratamento ARV estava disponível em 80 das 128 sedes distritais. Em 2007, o governo pretende estendê-lo a 120 sedes e 55 mil pessoas. Quem serão os afortunados?
ms/rb
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