Photo: agenciaaids-Brasil |
"Como informar que não há medicamentos antiretrovirais para todos, que não há milagre à vista para uma nova multiplicação dos pães?" |
Após ter vivido e trabalhado por dois anos em Moçambique, tenho muito a partilhar.
Decido, para comemorar o Dia Mundial de Luta Contra a Sida, escrever sobre o “silêncio” ou o “não-dito” que ainda permeia esse tema, após avanços significativos em alguns países, conforme o último Relatório Epidemiológico Mundial, lançado dia 21 de Novembro, pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Onusida).
O tema do Dia Mundial foi "Mantenha a Promessa", para nos lembrar de tudo que já foi dito e prometido para enfrentar a epidemia.
Entretanto, o silêncio sorrateiro permanece com suas mil faces:
O silêncio mais doloroso é o silêncio resignado das mães nos inúmeros postos de saúde que visitei. O silêncio é constrangedor, passivo e questionador. As crianças, aninhadas nas costas das mães, envoltas em coloridas capulanas, estão à mercê do agente de saúde, replicador do silêncio dos seus superiores, provocando um efeito cascata de impotência.
Como informar que não há medicamentos antiretrovirais para todos, que não há milagre à vista para uma nova multiplicação dos pães?
O silêncio das crianças não chega até nós, fazedores das políticas. Discutimos, em grupos de trabalho, os critérios mínimos para a elegibilidade ao tratamento: quem terá a chance de receber os medicamentos essenciais - crianças órfãs? De ambos os pais? Só de pai? Só de mãe? Da cidade? Do campo? A dolorosa decisão deve ser tomada e poucas serão as privilegiadas.
Há o silêncio imposto às pessoas vivendo com HIV, com restrito direito à voz nas inúmeras reuniões diárias, muitas vezes em Inglês, com parceiros e consultores. É o clássico diálogo de surdos, sem chance de ouvirmos as recomendações do histórico encontro GIPA (Maior Envolvimento de Pessoas Vivendo com HIV), ocorrido em Dezembro de 1994, em Paris.
Há o silêncio dos homossexuais, das profissionais do sexo e dos usuários de drogas. São totalmente invisíveis, a margem dos direitos humanos e das metas do acesso universal à prevenção, ao tratamento, aos cuidados e ao apoio.
Há o silêncio cúmplice dos professores que ousam seduzir suas alunas num jogo do “toma lá, dá cá”: contatos íntimos por notas e promoções. No fim, ambos são vítimas do vírus: as escolas estão com menos professores e o número de jovens vivendo com HIV cresce num ritmo alarmante.
Há o silêncio maroto dos maridos e de suas inúmeras parceiras. Todos sabem dos romances furtivos e fingem que nada se passa.
Por último, há o meu silêncio preso na garganta. Reflito sobre tudo que poderia ter feito e não fiz.
Agora, trabalhando no Panamá, reafirmo meu compromisso de romper o meu silêncio.
Para terminar recordo uma tarde, na década de 90, quando Paulo Freire, em sua casa no bairro do Sumaré, em São Paulo, afirmava enfático que o homem moderno perdeu a virtude da indignação. Nenhum drama social nos deixa indignados. Assistimos passivos, e seguimos tranqüilos nosso caminho diário da roça.
Convido a meus amigos para uma opção corajosa pela indignação e romper o silêncio. Eu já optei. Confesso que transforma e dá sentido a minha vida.
[ENDS]
|