ÁFRICA: Mulheres ainda no final da fila para acesso a terra

Photo: Manoocher Deghati/IRIN  |
Depois de anos se dedicando à terra, com a morte de seus maridos... |
NAIROBI, 13 Agosto 2007 (PlusNews) - Os inhames da machamba familiar já estavam maduros, quando o marido de Elizabeh Igwenagu faleceu. No final da semana de rituais funerários, a família dele levou toda a colheita do tubérculo grosso e parecido com batata, que é o alimento principal no sul da Nigéria.
“Eu implorei para que eles deixassem um pouco para as crianças, mas eles não me ouviram”, lembra Igwenagu.
Como Igwenagu, muitas viúvas encontram os campos vazios e um novo cadeado em suas portas quando voltam do funeral de seus maridos. Em toda a África, a desapropriação de viúvas e órfãos é cada vez mais frequente, impulsionada pela epidemia da Sida.
Em muitas sociedades, os direitos das mulheres a terra e propriedade são frágeis e dependem dos homens. A lei escrita pode garantir a igualdade entre homens e mulheres, mas questões familiares são geralmente resolvidas segundo a lei costumeira, que evoluiu no sentido de reter a propriedade entre a família e sob o controle masculino.
Com a coesão da família destruída pela Sida e pela pobreza, os mecanismos tradicionais de proteção social desaparecem. E com um grande número de homens morrendo de doenças relacionadas à Sida, num ambiente de medo e estigma, a apropriação de propriedades de viúvas e órfãos aumenta.
“A Sida despertou as mulheres para muitas coisas que elas não sabiam antes”, disse Limota Goroso Giwa, diretora executiva do Centro Feminino Internacional de Comunicação, na Nigéria.
Onde é o lar?
Na intersecção da Sida com os direitos das mulheres à terra, viúvas e órfãos são os perdedores.
“Onde é a casa de uma mulher? Onde você nasce ou onde você se casa. Um dia você acorda e não tem mais onde morar”, disse Florence Enyogu, da Associação Comunitária Ugandense para o Bem-estar da Criança.
O desprovimento de terras pode assombrar uma mulher mesmo após sua morte. Em algumas comunidades muçulmanas da Uganda, uma mulher solteira cujo pai faleceu e cujos irmãos a desapropriaram não tem nem um lugar para ser enterrada, disse Tubwita Grace Bagaya, membro do Parlamento ugandense.
Enyogu e Bagaya discutiram o impacto da Sida sobre a questão da propriedade e da ocupação de terras por mulheres durante a Primeira Conferência Internacional de Mulheres e Sida , que aconteceu no mês passado em Nairóbi.
Tabu a ser herdado
Sociedades matriarcais, como as da região entre o norte da Angola e a Zâmbia, Malauí, partes da República Democrática do Congo e o norte do Moçambique – onde terras e linhagem passam de mãe para filha –, oferecem às mulheres um pouco mais de proteção.
Em sociedades patriarcais, porém, onde os homens transmitem terras e linhagem, os direitos das mulheres à propriedade dependem de seu parentesco masculino. Quando o marido morre, as reivindicações da família dele têm mais peso do que as da viúva.
Onde é a casa de uma mulher? Onde você nasce ou onde você se casa. Um dia você acorda e não tem mais onde morar. |
Os casamentos polígamos, frequentes na África, complicam ainda mais as coisas, com esposas mais velhas e mais novas, seus filhos e uma infinidade de parentes entrando na competição pelas propriedades.
A constituição de um país e outras leis podem garantir o direito da mulher à herança, mas ela enfrenta inúmeros obstáculos antes de exercer esse direito.
Mulheres analfabetas podem cair na armadilha de parentes ou vigaristas e assinar documentos cedendo suas terras e sua casa. As mulheres podem se sentir intimidadas por procedimentos legais. Às vezes elas só falam a língua local e os tribunais não dispõem de intérpretes.
No norte de Gana, o fato de uma mulher herdar a propriedade do marido é um tabu. As viúvas têm medo de que elas e seus filhos morram se o fizerem, disse Faty Alhasan, diretora executiva da associação de mulheres ganense Grassroots Sisters.
“Nós temos rainhas e chefes-mulheres, mas se elas têm direito às terras é uma outra história”, disse Alhasan.
Consiga seus direitos
A solução encontrada pela Grassroots Sisters foi criar um sistema de poupanças, onde as mulheres compram as terras coletivamente.
Em outros lugares, as comunidades estão se mobilizando para proteger viúvas e crianças.
A Rede Queniana de Associações Femininas (GROOTS, do inglês), por exemplo, organiza grupos de vigilância que monitoram famílias enlutadas, faz pressão sobre dirigentes e administradores locais e serve como mediador em conflitos de propriedade.
Uma pesquisa feita em 2006 pela GROOTS em três distritos mostrou que mais da metade dos órfãos entrevistados tinham perdido as propriedades de seus pais para parentes.
“Estamos lutando para convencer a nação de que as mulheres precisam de uma garantia de seus direitos a herança e terras”, disse Catherine Gatundu, vice-coordenadora da Aliança Queniana pela Terra.
Em Moçambique, o Foro Mulher elaborou em 2004 um manual básico redigido em línguas locais que explica as leis sobre família e herança aos líderes comunitários, propondo soluções justas para diferentes situações.
As estratégias recomendadas por ativistas da terra variam de básicas a elaboradas: aprender a ler e a escrever, possuir documentos de identidade, legalizar os casamentos, registrar os filhos, fazer um testamento, pressionar o Parlamento, e delimitar as terras da comunidade para evitar que os chefes as vendam.
Procedimentos legais conflitantes
O continente africano já fez algumas conquistas. Em Serra Leoa, foram aprovadas esse ano três leis que garantem os direitos das mulheres a terra, propriedade e herança. Mas em Gana, país democrático, uma legislação mais igualitária sobre a terra foi protelada e não há nenhuma mulher na Comissão de Terra, disse Alhassan.
As leis, porém, só são úteis quando conhecidas, postas em prática e cumpridas.
“Uganda tem boas leis, mas as mulheres enfrentam despejo porque não têm informações sobre seus direitos”, disse Bagaya.
A queniana Achola Pala, antropóloga de renome e ativista pelos direitos da mulher, apontou na conferência que “a cultura tradicional é importante, porque é a base do dia-a-dia. A cultura é o capital social das mulheres, mas elas deveriam ser capazes de lidar com ela com mais autonomia e poder de decisão.”
"Nossa maior dificuldade é ligar as práticas culturais ao quadro legal, e a Sida exige urgência nessa área”, disse Pala.
O marido de Igwenagu faleceu em 1981. Mas ela luta até hoje pelos direitos de viúvas, como uma das fundadoras da Associação de Viúvas Santa Rita, grupo de apoio coordenado pela igreja católica no estado de Enugu, no leste da Nigéria.
“Na associação, nós defendemos nossos direitos e os direitos de nossos filhos coletivamente”, escreveu Igwenagu na revista da associação.
A associação oferece às viúvas aconselhamento jurídico, pequenos empréstimos e apoio moral para resistir quando são forçadas a certos rituais de luto, tais como longos períodos de abstinência, rituais de purificação e seios nus.
Depoimentos de outras viúvas publicados na revista refletem a história de Igwenagu, com a Sida como fator agravante: perda de propriedades, rejeição e culpa pela morte do marido.
“Não faltaram conferências internacionais e declarações sobre este problema nos últimos 30 anos, mas a realidade é que ainda hoje as mulheres não têm acesso à terra”, concluiu Pala.
(ms/ll)
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Tema(s): (IRIN) Artes/Cultura, (IRIN) Economia/Negócios, (IRIN) Gênero, (IRIN) Estigma/Direitos Humanos/Leis , (IRIN) Juventude
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[Este boletim não reflecte necessariamente as opiniões das Nações Unidas] |
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