MOÇAMBIQUE: Há 11 anos, o país despertava contra o estigma
MAPUTO, 24 Agosto 2007 (PlusNews) - Ao lembrarem de poucos anos atrás, Remigio Macuácua, de 47 anos, e Joaquim Chambisso, de 45, contam que pessoas se recusaram a comer no mesmo prato, beber no mesmo copo e sentar ao lado deles nos autocarros por eles serem seropositivos.
Macuácua e Chambisso são membros fundadores da primeira associação de pessoas vivendo com HIV e Sida de Moçambique, a Kindlimuka, que neste dia 24 de Agosto faz 11 anos.
“Ninguém acreditava que eu tinha HIV”, recorda Macuácua. “Achavam que a Sida não atingia os negros africanos, só os brancos, os europeus e os gays.”
Chambisso, pai de cinco filhos, lembra que o teatro popular foi a primeira arma contra o preconceito, explicando que qualquer um podia apanhar o HIV – que era uma doença, não feitiço.
As lembranças da história da Kindlimuka (despertar, em shangana) caminham ao lado das conquistas contra a discriminação dos seropositivos em Moçambique.
Sentença de morte
Antes de entrar na Kindklimuka em 1998, Irene Cossa acreditava que, sendo seropositiva, estava com os dias contados para morrer.
“Era ignorância minha. E a ignorância é a causa da maioria dos preconceitos”, comenta Cossa, quatro vezes mãe e quatro avó.
Ela lembra que há cinco anos, as pessoas temiam entrar na sede da Kindlimuka. “Passavam, olhavam, mas não entravam”, conta.
O estigma também estava nos hospitais, conta Souza Domingo Shilaule, activista seropositivo.
“Ir se tratar da Sida era como ir à casa mortuária. Ninguém conversava. Hoje, em quase todo hospital há um activista que ajuda as pessoas a se sentirem mais confortadas”, comenta.
No Hospital de Dia do Alto Maé, em Maputo, a organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) convocou seropositivos para postos de paciente perito, que compartilham suas experiências publicamente.
Há cinco anos ir a um centro que atendia seropositivos era como ir à casa mortuária. |
Para este posto, que nos últimos anos não atraía ninguém, candidataram-se 37 pessoas.
Em 2001, num workshop de reportagens sobre Sida, em Nampula, só um seropositivo que morava fora da cidade aceitou falar com os jornalistas. Dois anos depois, quase 50 se assumiam publicamente.
A redução do medo e do preconceito deve-se primeiramente à maior circulação de informações, explica a psicóloga Cristina Cabelera, do MSF.
Hoje, seja na mídia ou no cotidiano, nas paredes ou nas árvores pintadas com o lacinho vermelho, a Sida é um assunto em evidência.
“Quase todo mundo já ouviu falar da Sida”, disse ela.
Em segundo lugar, o tratamento antiretroviral gratuito, iniciado em 2003, mostrou que a Sida não é uma sentença de morte e que os seropositivos podem viver saudáveis e produtivamente. As organizações internacionais que começaram a dar tratamento – MSF e Santo Egídio – produziram uma leva de activistas comprometidos.
Os primeiros a dar a cara
Salvador Mazive, também membro fundador da Kindlimuka, foi o primeiro seropositivo a se assumir publicamente, fotografado numa revista em 1996.
Quatro anos depois ele morreu por falta de antiretrovirais, mas deixou sua coragem viva.
Da Kindlimuka surgiram outras organizações de defesa dos seropositivos, entre elas a Rensida, uma rede nacional de pessoas vivendo com HIV e Sida, que tem 27 associações afiliadas e 1300 membros.
Outro facto histórico contra o estigma foi o primeiro anúncio na imprensa de óbito devido à Sida, publicado por nada menos que Graça Machel, ex-esposa do primeiro presidente moçambicano Samora Machel e actual de Nelson Mandela, ex-presidente sul-africano.
O anúncio da morte de seu familiar Boaventura Machel criou alta polêmica entre o direito à privacidade dos familiares e a urgência da honestidade. Porém, por se tratar duma figura respeitada como Graça Machel, ajudou a diminuir o estigma.
Maurício Cysne, coordenador do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV e Sida em Moçambique, acredita que assumir o HIV publicamente melhora a compreensão da epidemia, que apesar de provocar exclusões na sociedade, não exclui ninguém do risco de infecção.
“Assumir é fundamental para que a sociedade moçambicana passe a conviver com a Sida de uma forma mais humana”, disse ao PlusNews.
Com uma seroprevalência nacional de 16.2 por cento, é provável que quase todo moçambicano conheça algum seropositivo.
Mesmo assim, em Maputo, ainda se ouvem comentários como “não é aconselhável ficar perto de seropositivos porque eles podem ter má-fé e infectar as crianças e outras pessoas de forma propositada”, segundo um jovem universitário de 24 anos, que não quis se identificar.
Luiza Mabjaia, 32 anos e seropositiva assumida há quatro meses, disse que na sua comunidade ainda dizem “esta aí está perto da cova.”
Outro problema é que a maioria dos activistas seropositivos são pessoas humildes – os ricos tratam se em clinicas privadas ou na África do Sul, em sigilo – o que mantem a impressão de que a Sida é doença dos pobres.
Despertar através da lei
A primeira lei contra a discriminação foi aprovada em 2002 e proíbe, sob pena de multa, exigir teste de HIV, discriminar ou demitir um trabalhador pelo facto de ser seropositivo. Essa lei já ajudou muitos seropositivos moçambicanos.
Em 2005, a Rede Moçambicana de Organizações Contra a Sida, a MONASO, entregou à Assembléia da República um projecto para uma nova lei, ainda em discussão, que ampliaria a proteção dos seropositivos além do ambiente de trabalho.
“Para acabar o estigma, é preciso fazer valer os nossos direitos e a lei serve para isso”, disse André Cossa, membro da administração da Kindlimuka.
Com a mesma força com que Macuácua, Chambisso e Mazive deram um primeiro passo e despertaram a sociedade sobre o preconceito, a nova geração de activistas, como Cossa, quer dar um segundo: fazer cumprir a lei e erradicar qualquer forma de discriminação ainda existente.
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